Só nós dois

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Pormenor do cerco de Lisboa de 1147 (Roque Gameiro)  


Foi através do envolvimento pessoal de Bernardo de Claraval que D. Afonso Henriques conseguiu o apoio armado dos cruzados vindos do Norte da Europa para tomar Lisboa. Porém, as negociações não terão sido nada fáceis. Largando do porto de Dartmouth a 23 de Maio de 1147, uma frota cruzada composta por perto de 164 navios e combatentes de várias origens chegou ao Porto a 16 de Junho, se bem que boa parte deles tenha ficado para trás durante uma tempestade e cinco navios partidos anteriormente de Inglaterra (18 de Maio) já ali tivessem chegado pelo dia 8, dois dias depois de D. Afonso Henriques ter partido para as imediações de Lisboa com as suas forças. Recebidos pelo bispo do Porto, D. Pedro Pitões, que sabia de antemão da chegada dos navios cruzados e que, para além disso, havia sido alertado na véspera para a possibilidade da chegada dos “navios dos francos” por intermédio de uma carta do próprio D. Afonso Henriques, os cruzados foram incitados a colaborar no cerco a Lisboa. Acabariam por partir rumo a Lisboa no dia 26 ou, mais provavelmente, já no dia 27, na companhia dos restantes navios que se tinham dispersado durante a viagem, do bispo do Porto e de D. João Peculiar, arcebispo de Braga. Esta é a versão dos acontecimentos que Raul – cruzado inglês que participou no cerco de 1147 – nos dá.

Enquanto os navios cruzados desciam a costa do Garb al-Ândalus, já no litoral de Sintra-Cascais, Raul refere que “o vento que caía da Serra de Sintra se abateu com temporal tão fora do vulgar que uma parte dos batéis foi apanhada com os seus homens. Manteve-se o temporal até à entrada do porto do rio Tejo. Quando entrávamos no porto, porém, apareceu nos ares um prodígio extraordinário. Foi o caso que umas nuvens grandes e resplandecentes que vinham connosco dos lados das Gálias nos apareceram a irem ao encontro de outras grandes nuvens de farrapos negros que vinham de terra firme; eram como fileiras em linha de batalha e juntando cada qual as suas alas esquerdas entraram em luta com ímpeto extraordinário […]”. Portanto, Raul aproveita a ocorrência de um fenómeno meteorológico – típico daquela área – para, no seu seguimento, dar azo a uma descrição literária maniqueísta de uma luta travada entre as nuvens cristãs e as nuvens islâmicas em que as primeiras acabam por vencer, cessando assim “toda a fustigação do temporal”, afastando-se as impurezas do ar, acabando o céu por se tornar límpido e azul. Posto isto, e “algum tempo depois, por volta da hora décima do dia, chegámos à cidade que não fica muito distante da foz do rio Tejo”. Segue-se uma descrição do rio Tejo, Lisboa e arredores.

Ora, estas passagens levantam algumas questões relacionadas com a intencionalidade do relato, o qual, como observou Maria João Branco, “ainda apresenta muitas facetas por explorar”. Pensamos que o factor geográfico é um elemento fulcral para aclarar as possíveis omissões que julgamos constarem nesta parte do relato onde a intencionalidade é claramente a de fazer prevalecer a apologia da luta e vitória do bem contra o mal, do cristão contra o mouro. Como tivemos oportunidade de ver, o cruzado alude ao tal “temporal tão fora do vulgar” que ganhava forma com base nos ventos vindos da serra de Sintra, mas logo de seguida já está a aludir à “entrada do porto do rio Tejo”. Ou seja, o cruzado não refere a necessidade de se fugir ao temporal e procurar abrigo, situação que não é de aceitar tendo em conta as dificuldades e as particularidades da navegação nesta área costeira, acrescendo o facto de que alguns navios já tinham ido ao fundo e de que o porto de Cascais estava na rota dos cruzados, estava ali mesmo a oferecer abrigo. Mas mais: quando aprofundamos estas questões sob o ponto de vista marítimo, sob o ponto de vista do desenrolar do processo náutico, evidentemente que seria impensável que c. 170 navios – isto se não fossem 200 – entrassem pela barra do Tejo sem qualquer tipo de coordenação e ainda para mais sob forte nortada. Certamente que ocorreriam mais naufrágios ao tentarem entrar na barra, a qual apresentava diversos perigos à navegação – nomeadamente os cachopos –, sendo que a entrada de navios no Tejo nem sempre se fazia de forma directa. Era em Cascais, conforme revelam diversas fontes medievais e modernas, que os navios se abrigavam da nortada, aguardavam pela maré e vento favorável para mais seguramente rumar a Lisboa. Neste sentido, e tal como indicam algumas crónicas tardias, a aportagem da frota cruzada teria tido lugar em Cascais para abrigo, sendo que aos poucos, passando a fúria dos ventos, os navios teriam começado a entrar no Tejo.

De facto, embora Raul se limite a abordar o temporal e a tal luta entre as nuvens, omitindo a continuação das dificuldades náuticas por que os navios teriam passado já nas imediações da barra do Tejo, algumas crónicas do século XV, baseadas numa memória antiga (possivelmente do século XII), mencionam a aportagem da frota cruzada no porto de Cascais. Segundo a Crónica de Cinco Reis de Portugal, já depois de tomado o castelo de Mafra e antes da tomada de Lisboa, D. Afonso Henriques foi cercar Sintra acabando mesmo por a tomar embora não se saiba “como [ele] a ouue se foi per força se por preitesia ou de que guisa naõ o achamos escrito senaõ tamsoomente que a tomou”. Depois disso, estando no alto do castelo com os seus senhores, o rei avistou uma frota de 180 naus a aproximar-se da Roca de Sintra (cabo da Roca). Espantados com a dimensão de tal frota, o rei mandou logo quatro cavaleiros que fossem à ribeira para saber que gente era aquela. Quando chegaram a Cascais já “a frota toda pousaua” e ali mesmo entraram em contacto com as gentes cristãs que tinham vindo às “espanhas pa guerrear com os mouros” e fazer serviço a Deus. Continuando, o autor da Crónica diz que nessa frota vinham muitos condes e grandes senhores, mas que a escritura, ou seja, o documento que terá dado origem a tal informação, somente apresentava o nome de quatro. Em Cascais, os mensageiros apresentaram os argumentos do rei para se fazer um cerco a Lisboa e, depois de um vaivém de recados, acertou-se que juntamente iriam tomar Lisboa à condição que, ao ser tomada, metade da cidade ficaria para o rei e a outra para os estrangeiros. O rei e as suas forças acabaram por seguir para a cidade por terra e a frota por mar.

Muito embora não nos possamos fiar totalmente nestes dados como possibilidade do que poderá ter acontecido, visto que divergem em muito do relato do cruzado, visto que terão sido inventados pormenores eventualmente para dar um conteúdo necessário à pouca informação que se continha num documento primitivo e até porque, por outro lado, D. Afonso Henriques sabia bem quem eram aqueles homens e os próprios cruzados já sabiam para o que vinham, não nos parece que essa presença cristã no litoral de Sintra e a ancoragem em Cascais fosse forjada. É verdade que as crónicas não são coevas dos acontecimentos ocorridos em 1147, daí que se tenha de ter cautela redobrada quando pensamos estas questões com fontes que surgem séculos depois, mas já vimos também que o próprio relato do cruzado é lacónico e omisso nesta parte fulcral das navegações rumo a Lisboa. Para além disso, conforme refere José Mattoso, é preciso ter em conta que as crónicas, por vezes, conservam reflexos de documentos e obras perdidas no tempo, sendo “o único testemunho” para a “reconstituição de acontecimentos muito anteriores” à época em que são escritas.
(cf. A Conquista de Lisboa aos Mouros. Relato de um Cruzado. Ed., trad. e notas de Aires A. Nascimento. Introd. de Maria João Branco, 2.ª ed., Lisboa, Vega, 2007, pp. 12 e 74-77; Crónica dos Cinco Reis de Portugal, vol. I, [Porto], Civilização, 1945, cap. XXI, pp. 91-92; Crónicas dos Sete Primeiros Reis de Portugal, 2.ª ed., vol. I, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 2009, cap. XXII, pp. 76-78; Crónica de Portugal de 1419, Aveiro, Universidade de Aveiro, 1998, pp. 46-48; Duarte Galvão, Crónica de El-Rei D. Afonso Henriques, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1995, cap. XXXIIII, pp. 119-121; Visconde de Juromenha, Sintra Pinturesca, ou Memória Descritiva da Vila de Sintra, Colares e seus arredores, Sintra, Câmara Municipal de Sintra, 1989-1990, pp. 14-15; José Mattoso, “Notas críticas às notas de fim de volume”, in Alexandre Herculano, História de Portugal. Desde o começo da Monarquia até o fim do Reinado de Afonso III, vol. I, Amadora, Livraria Bertrand, 1980, p. 694; Marco Oliveira Borges, “Em torno da preparação do cerco de Lisboa (1147) e de uma possível estratégia marítima pensada por D. Afonso Henriques”. História. Revista da FLUP, IV sér., vol. 3, Porto, Faculdade de Letras do Porto, 2013, pp. 123-144).

Marco Oliveira Borges, Arqueologia e História de Cascais.

Sem comentários:

Enviar um comentário